Como foi que nos tornamos o país com a terceira maior população carcerária do mundo?
O tema dessa news foi escolhido depois que li o livro do Denis Russo Burgierman “O fim da guerra”, que fala sobre um novo sistema para lidar com as drogas, trazendo um panorama histórico muito importante. Me vi tomando consciência pela primeira vez de uma série de fatos que até então eram desconhecidos para mim e que ajudaram a clarear a minha visão, confirmando novamente como temos um sistema completamente burro no que diz respeito a política de drogas. Mais do que nunca, precisamos ficar atentos aos conteúdos que absorvemos e entender para além da superfície o que está por trás das questões políticas atuais. Portanto, resolvi dividir essa pesquisa que se iniciou através do livro do Denis e se estendeu a outros textos, que deixo os links ao final para quem quiser se aprofundar mais.
Organizei os fatos que encontrei nesses materiais através de uma linha do tempo, buscando facilitar a compreensão de uma série de decisões (e censuras) ao longo da história, nos fazendo chegar até os dias de hoje, em que o Brasil ocupa o 13º lugar no mundo no ranking de homicídios — sendo a maior parte deles estimulado pela Guerra às Drogas. Vamos lá.
1910: PRIMEIRA GRANDE ONDA DE IMIGRAÇÃO DE MEXICANOS PARA O NORTE.
- O movimento foi causado devido a Revolução Mexicana e na época a maconha passou a ser vista próxima das fronteiras com os EUA. No México, ela já era utilizada há séculos por curandeiras como parte da medicina à base de ervas, indicada para várias doenças;
- Ainda em 1910, os estados americanos da fronteira começaram a proibir a maconha a partir de boatos que diziam que ela matava neurônios e levava a loucura.
1916: A MACONHA CHEGA AO BRASIL POR HOMENS E MULHERES ESCRAVIZADOS QUE ERAM CHAMADOS DE “FUMO DE ANGOLA”.
1920: NOS EUA, INICIA-SE O MOVIMENTO “LIGA DA TEMPERANÇA”, CRIADO PARA COMBATER O USO DO ÁLCOOL.
- Com a proibição, criam-se bares clandestinos para venda de bebidas com alto teor alcóolico;
- Sobem os preços da bebida, que começa a movimentar muito dinheiro;
- Nascem as máfias.
1929: AS PENAS COMEÇAM A FICAR MUITO MAIS SEVERAS. QUEM VENDESSE UMA BEBIDA, PODERIA PEGAR 5 ANOS DE PRISÃO.
- Passa a ser necessário um custo na logística de proibição muito maior (em paralelo também ocorria a crise de 29). De 2,2 milhões em 1920, passa para 12 milhões os gastos em 1929;
- A população carcerária americana sobe de 3 mil para 12 mil entre 1920 e 1932, entretanto a oferta de bebidas não diminui;
- Policiais ficam mais violentos e o índice de homicídios aumenta.
1933: PROIBIÇÃO ABOLIDA.
- Posteriormente, Índice de homicidios nos EUA cai por onze anos consecutivos.
1933: HARRY ANSLINGER, QUE TRABALHAVA NO ESCRITÓRIO ENCARREGADO DE APLICAR A PROIBIÇÃO DO ÁLCOOL FOI TRANSFERIDO PARA O FBN (Escritório Federal de Narcóticos).
- Na época, os principais usuários de drogas eram as donas de casa com o uso de remédios a base de opiáceos e os veteranos que voltaram da Primeira Guerra, dependentes de morfina. Como eram poucos os casos, os orçamentos eram bastante reduzidos, diferente do que havia nos tempos da proibição do álcool. Para aumentar o orçamento, Anslinger resolveu incluir outra substância mais popular para controle no FBN: a maconha;
- Anslinger foi para as redações dos jornais para vender a notícia de um novo mal que estava invadindo os EUA e após a informação virar manchete, ele voltou ao Congresso Nacional para convencer os políticos que a maconha era muito mais séria que o ópio e a heroína e portanto, precisaria de muitos recursos para combatê-la. Um único médico esteve presente nas audiências, o presidente da Associação Nacional de Medicina, William Woodward, que se opôs à proibição, acusando a comissão de ser uma farsa, porém ele era o único a defender tal ponto;
- Por se tratar de uma droga ligada a grupos sem poder político, usada por comunidades marginalizadas, a proibição foi muito mais fácil de acontecer.
1937: A MACONHA PASSA A SER PROIBIDA NOS EUA.
1961: É ASSINADA A CONVENÇÃO ÚNICA SOBRE DROGAS NARCÓTICAS E O MUNDO SE COMPROMETE A COMBATER O TRÁFICO.
1969: RICHARD NIXON VENCE AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NOS EUA E ENCOMENDA UM ESTUDO SOBRE A MACONHA PARA EMBASAR A REPRESSÃO QUE OCORRIA NA ÉPOCA CONTRA A DROGA.
- A pesquisa foi comandada por um político conservador, já que Nixon não confiava nos cientistas. Raymond Shafer, ex-governador republicano da Pensilvânia, chefiou a comissão e descobriu que os males até então apontados sobre a maconha estavam sendo exagerados e sugeriu que o governo regulasse o mercado para não cair na mão de criminosos. Nixon rejeitou o relatório e declarou guerra contra as drogas.
1970: COMEÇOU A SE REVELAR NOS EUA O POTENCIAL MEDICINAL DA MACONHA.
- Robert Randall, um taxista portador de glaucoma, foi quem começou a plantar em casa após perceber que a maconha melhorava a sua visão. Foi preso e com a ajuda de ativistas tentou convencer o governo que o uso era medicinal. No processo, ele descobre que o estado já tinha conhecimento sobre o efeito medicinal da droga, mas não permitia divulgação para não passar a “mensagem errada” para as pessoas.
1971: AS SUBSTÂNCIAS PASSAM A SER CATEGORIZADAS EM 5 TIPOS.
- Categorias 3, 4 e 5 para aquelas drogas perigosas, porém com comercialização permitida sob controle, pois tem valor medicinal (medicamentos produzidos por laboratórios farmacêuticos); categoria 2 composta por drogas muito perigosas, porém que não podem ser completamente banidas devido ao seu valor medicinal (cocaína e morfina); e na categoria 1 estão as drogas mais perigosas, sem nenhum valor medicinal e essas devem ser banidas completamente (maconha).
1975: O INSTITUTO DE SAÚDE DO GOVERNO DOS EUA FORNECE DINHEIRO PARA PESQUISADORES DA FACULDADE DE MEDICINA DE VIRGÍNIA ENCONTRAREM EVIDÊNCIAS DE QUE A MACONHA PREJUDICA O SISTEMA IMUNOLÓGICO.
- Não foi encontrada nenhuma evidência e os estudantes aproveitam a maconha em laboratório para testar em tumores de ratos (de pulmão, mama e leucemia). O resultado foi a diminuição dos tumores, além do fato da droga ter atacado o tecido tumoroso, sem afetar o tecido saudável;
- Novamente, a pesquisa foi silenciada e cancelada, pois o DEA (Agência de aplicação da lei antidrogas americana) não foi a favor do resultado, que, se divulgado, poderia NOVAMENTE passar a “mensagem errada”.
1980: O GOVERNO REAGAN AUMENTA AS PENAS DE PRISÃO PARA USUÁRIOS E TRAFICANTES DE DROGAS E CRIA LEIS AUTORIZANDO MEDIDAS EXTREMAS.
- Reagan passa a permitir que a lei de confisco possibilite os policiais apreenderem bens de traficantes sem levar o caso à justiça e fazendo leilões para ficar com o lucro. Isso faz com que a polícia se interesse mais em caçar traficantes a homicidas, pois os traficantes acabam dando dinheiro.
1989: CAI O MURO DE BERLIM E OS EUA SE TORNAM A ÚNICA SUPERPOTÊNCIA DO MUNDO, AMEAÇANDO COM SANÇÕES ECONÔMICAS PAÍSES QUE NÃO COLABORASSEM COM A GUERRA CONTRA AS DROGAS.
- A pressão não podia ser lutada apenas dentro dos EUA, uma vez que a cocaína era produzida na América do Sul, heroína vinha da Ásia e maconha chegava do México.
1990: COMEÇA A AMPLIAR EM PAÍSES DO MUNDO TODO O ORÇAMENTO DOS ÓRGÃO DE REPRESSÃO COM A AJUDA DOS AMERICANOS.
- Centenas de bilhões de dólares são gastos com helicópteros militares, armas de alto calibre, vigilância nas fronteiras.
1990: APROVA-SE A LEI DE CRIMES HEDIONDOS NO BRASIL, COLOCANDO O TRÁFICO NA MESMA CATEGORIA QUE TORTURA, CHACINA, GENOCÍDIO E ESTUPRO DE MENORES DE IDADE.
1998: ENCONTRO FEITO EM NOVA YORK NO PRÉDIO DA ONU PLANEJA A OFENSIVA FINAL CONTRA AS DROGAS.
- Todos os países-membros concordaram com a meta de eliminar as drogas da Terra em dez anos.
2006: NO BRASIL, MUDA A LEI E USUÁRIOS PASSAM A NÃO RECEBER MAIS PENA DE PRISÃO.
- Entretanto, a distinção entre usuário e traficante não fica clara na lei, deixando aberta uma margem muito grande para continuarmos um sistema racista e classicista;
- Os dados mostram que brancos em regiões mais nobres da cidade são considerados usuários, ainda que com quantidades maiores de droga do que negros, considerados traficantes.
2008: COMPLETADO O TEMPO PREVISTO PARA A ELIMINAÇÃO DAS DROGAS E OS NÚMEROS SÓ EVIDENCIAM O AUMENTO DO USO.
- Como resultado tivemos: o consumo de todas as drogas cresceu no mundo inteiro. Maconha em 8,5%; cocaína 25%; heroína e outros opiáceos 34,5%. Quanto mais perigosa a droga, maior foi o aumento. Além disso, o crime organizado ficou mais poderoso e lucrativo;
- Entre 2005 e 2013, a população carcerária de delitos relacionados a drogas aumentou 345% indo de 32.880 a 146.276 presos.
2014: SÃO GASTOS 409,5 MILHÕES COM REPRESSÃO POLICIAL NO COMBATE ÀS DROGAS.
2016: SOBE EM 50% O NÚMERO DE CRIANÇAS ENTRE 10 E 12 ANOS NA REDE DO TRÁFICO DE DROGAS.
2017: CONTEÚDO DA PESQUISA DO LEVANTAMENTO NACIONAL DOMICILIAR SOBRE O USO DE DROGAS É CENSURADO.
- Os resultados comprovam que a chamada epidemia das drogas na verdade não existe e que, apesar de preocupantes, os números não representam o cenário que nos é pintado.
2018: NÚMERO DE PRESOS EM SÃO PAULO POR TRÁFICO DE DROGAS CRESCE 508% DE 2006 A 2018. BRASIL PASSA A TER A TERCEIRA MAIOR POPULAÇÃO CARCERÁRIA DO MUNDO.
De tudo isso, é importante vermos os padrões que se repetem e perceber através de todos os dados disponíveis e estudos realizados a ineficácia dessa política proibicionista. Mais do que isso, é inegável que a guerra contra as drogas sempre foi uma guerra nascida do preconceito e classicismo, atingindo, principalmente, populações negras, pobres e indígenas. Há, para além das informações que coloquei acima, uma série de pesquisas que evidenciam números que são importantíssimos para esse debate, como, por exemplo, o fato de que não há um aumento no número de usuários de maconha quando são implementadas políticas de descriminalização.
É urgente a necessidade de mudanças nas políticas relacionadas a esse assunto, e como exemplos, temos alguns países onde a legalização e regulamentação já foram feitas. O resultado são cenários bastante positivos como em Portugal, Canadá, Holanda e Califórnia. Drogas são sim um tema sério, porém, da forma como lidamos hoje em dia, não chegamos em soluções, apenas em números de mortes que aumentam cada vez mais. Esse é um assunto de saúde pública e precisamos interpretá-lo a partir de um outro ponto de vista, mais lúcido e livre de preconceitos.
Faz sentido? O que vocês acham sobre a legalização das drogas? Existe algum ponto nessa linha do tempo que não coloquei? Como podemos aumentar a consciência das pessoa sobre esse assunto? Dúvidas, sugestões e ideias, me manda um alô: fran@shoottheshit.cc
Leitura complementar
- Canadá libera uso recreativo e medicinal da maconha.
- Entrevista sobre a proibição da maconha no Brasil.
- Documentário muito bom sobre o tema.
Fontes
- Livro “O fim da Guerra”, de Denis Russo Burgierman;
- Matéria “Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo”, da Agência Brasil.
- Matéria “A atual política de drogas no Brasil: um copo cheio de prisão”, do Le Monde Diplomatique Brasil.
- Estudo “Impacto econômico da legalização das drogas no Brasil”, da Consultoria Legislativa.
- Estudo censurado sobre drogas no Brasil, do The Intercept.
- Matéria “Aumenta entrada de crianças no tráfico de drogas no Rio de Janeiro”, da Gazeta Online.
- Matéria “Precisamos encarar os custos da guerra às drogas, diz ex-ouvidora da PM do Rio”, do Uol.
- UNOCD — Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes.
Esse texto foi escrito pela Fran e enviado para quem segue nossa newsletter no dia 17/04/19.