Como nos sentimos quando vemos estratégias antiéticas na propaganda
Ifood e o movimento falso para desmobilizar os protestos de seus entregadores.
Bom, vamos lá. O assunto tem alto potencial de debate e queria colocá-lo aqui para que a gente conversasse um pouco sobre como nos sentimos quando vemos uma estratégia de mobilização — ou desmobilização -, acontecendo de uma maneira tão antiética.
Para quem não navegou muito pelas notícias atualmente, a Agência Pública divulgou uma matéria sobre o trabalho de algumas agências de propaganda cujo principal objetivo era desconstruir a luta por melhores condições de trabalho que os entregadores de delivery estavam buscando. Aqui tá a matéria na íntegra pra quem quiser ler: https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/
Infelizmente o primeiro sentimento ao ler a publicação não foi espanto ou surpresa, e acho que esse já é um ponto importante. É horrível estarmos programados para desconfiar. Como acreditar que estamos construindo uma sociedade melhor juntos se alguém pode estar me enganando e tirando proveito da minha confiança? Ou seja, no primeiro momento esse material só me ajudou a lembrar que estamos doentes enquanto sociedade.
Mas ok, depois de ficar um pouco triste, fiquei irritado. Irritado com as agências envolvidas. Irritado por alguém ter aceito esse trabalho. Irritado por ver que passam os anos e a responsabilidade social dessa indústria e dos profissionais que fazem parte dela praticamente não existe (generalizei porque fiquei irritado, óbvio). Uma indústria com relações de trabalho altamente tóxicas fazendo campanha para desacreditar uma luta que eles deveriam fazer na sua própria indústria. É interessante deixar claro que não foi “apenas” um trabalho antiético, foi contra a lei totaaaal e deveriam ser duramente penalizados (minha opinião). Segundo o código da publicidade, tudo que é de caráter propaganda precisa ser identificado como tal (sim, aqui entraria a discussão conteúdo vs publicidade e a regulação da comunicação em redes sociais), mas também diz que deve-se assegurar que as declarações que fazem em seu nome são baseadas em experiências reais, e me parece que colocar um entregador fake para defender seus interesses seja exatamente o contrário. E sim, não precisa falar o nome da marca para ser uma campanha da marca, afinal, quem tá pagando a conta? Sinto que faz total sentido a minha irritação, não acham?
Passando um pouco a irritação com as agências (não 100%), também fiquei pensando que para que elas fizessem a entrega desse trabalho, teve que existir um briefing. Um pedido de ajuda por parte da organização. E acredito que esse pedido de ajuda não foi criado pela instituição Ifood. Foram pessoas que viram esse movimento acontecendo e o entenderam como um problema. Foram algumas pessoas, provavelmente consideradas líderes, responsáveis por áreas e resultados da organização, que solicitaram o trabalho.
Ou seja, essas pessoas pensaram que, ao invés de abrir diálogo sobre melhores condições de trabalho com a principal categoria de pessoas envolvidas para a sustentação do seu negócio, o melhor seria investir em estratégias de comunicação que pudessem enfraquecer o debate.
Me pergunto qual foi a principal motivação dessas pessoas para essa decisão? Por que teria sentido elas usarem essa estratégia? Iriam perder benefícios caso entendessem esse movimento como uma oportunidade de criar uma marca ainda mais forte? Essa tomada de decisão foi pensada, planejada e debatida ou foi um comportamento natural dos “profissionais” envolvidos?
Enfim, é isso, muitos questionamentos sem resposta e sentimentos ruins aparecem quando esses casos ganham luz. Particularmente fico decepcionado — mais uma vez — com o mercado que eu e a Shoot fazemos parte. Mas também me sinto animado porque vejo que existem pessoas corajosas e dispostas a se arriscarem para que casos assim tenham visibilidade. Parabéns e obrigado aos que se rebelaram.
Termino esse desabafo com um chamado a quem trabalha com comunicação: sigam vazando informações sobre estratégias assim, contem para os amigos, comuniquem, se neguem a fazer, não é legal ficar criando perfil falso ou disseminando informações com objetivo de minar uma luta justa e importante para uma sociedade melhor. Não usem o conhecimento de vocês para objetivos obscuros e sejam conscientes de que a comunicação é uma das principais ferramentas de transformação social.
E sobre a estratégia em si, pra não dar muita luz e falar o óbvio, fica evidente que para que se criem movimentos reais sempre será necessário muito diálogo. E esse diálogo precisa ser com as pessoas envolvidas diretamente no movimento, não só com quem tá jogando ping pong no escritório ou com perfis falsos.
Você trabalha com comunicação também? Como se sentiu ao ler sobre o tema?
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Texto escrito por Artur Scartazzini, CEO da Shoot.