Nunca se sabe quando se está fazendo História

Shoot
4 min readOct 24, 2017

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Zapeando pelo Netflix, ano passado, encontrei duas séries incríveis sobre a origem do Hip Hop que merecem ser assistidas juntas, uma atrás da outra. Primeiro, The Get Down. Depois, Hip Hop Evolution.

The Get Down tem seis episódios, uma direção de arte impecável, roteiro certeiro, empolgante, vivo. Nele a história é ficcional, romantizada, criativa. Já o Hip Hop Evolution é um documentário com 4 episódios com os verdadeiros personagens, mostrando tudo com materiais, entrevistas, fotos e videos reais.

As duas séries retratam o Bronx nos anos 70, literalmente em chamas, abandonado em Nova York, passando por uma guerra civil, de gangues, de culturas, de tudo. Enquanto isso, em Manhattan, os ricos, brancos, afortunados, torravam seu dinheiro em boates, bebidas e drogas ao som da Disco Music. Mas foi no Bronx que nasceu o estilo musical que hoje é um mercado de bilhões e bilhões de dólares. E tudo começou com dois caras: um cara que tinha muuuuitos discos além de uma sensibilidade musical acima da média e outro cara com muito talento, cara de pau e um giz de cera.

Kool Herc era o cara dos muitos discos. No armário dele tinha tudo: dos bons e dos ruins. E com esses discos ele organizava festas que tocavam o seu estilo musical. A vibe dele era pegar um pequeno trecho de um disco, 10 ou 15 segundos da parte que geralmente era só a melhor bateria, percussão, sem voz e repetir esse mesmo trecho em um outro disco, estendendo a música, na mesa de som do lado. Esse recorte da música ele chamou de BREAK. Kool Herc podia fazer isso porque ele tinha discos repetidos, dois de cada. Quando o break acabava em um disco ele jogava o som pra mesa do lado e começava a tocar a mesma batida no outro disco. Quando acabava no outro, voltava a tocar no um. Quando acabava no um, voltava pro outro.

Grand Master Flash, que foi muito influenciado pelo Herc aprimorou a técnica de estender o break. Herc subia a agulha e botava mais ou menos onde a batida começava. Só que assim o som ficava meio zoado, porque não é fácil colocar a agulha no lugar certo. Foi aí que GMF teve uma ideia genial. O cara RISCOU o disco com um giz de cera para marcar exatamente onde o break começava. Então quando o break terminava de um lado ele passava pra outra mesa, enquanto girava o disco ao contrário até chegar na marcação que ele tinha feito para preparar a sequência do break. Quando terminava no outro disco, ele soltava e começava a girar o outro disco ao contrário até a marca que tinha feito. Assim ele não precisava levantar a agulha e rezar pra que ela estivesse no lugar certo. Dessa forma ele sabia EXATAMENTE que o seu break poderia ser um looping infinito e quase perfeito, como se a música fosse só aquilo. ELE RISCOU O DISCO!

O que o Grand Master Flash fazia era tão maluco que a galera ficava olhando pra ele e não dançava. E ele não queria isso. Ele queria que a galera dançasse. Aí pensou quer tinha que ter uma outra distração pra audiência. O MC. Alguém que estaria ali entretendo a galera. Normalmente uma pessoa com um bom vocabulário que pudesse improvisar, brincar e manter a vibe da galera lá em cima. O Mestre de Cerimônias foi se aperfeiçoando com o tempo, deixando de ter apenas a função distrair a galera e passou a ser o centro das atenções, com rimas cada vez mais fortes e alinhadas com a batida do DJ. Assim o MC foi se transformando no Rapper, e a combinação entre break e rap se transformando no que conhecemos hoje como Hip Hop.

Nunca se sabe quando se está fazendo História porque a história só se conta olhando para trás. Kool Herc e Grand Master Flash não sabiam que estavam sendo criativamente geniais. Esses caras, dentre outros do Bronx, não tinham iMacs, Internet, Twitter, Instagram, estúdios, tecnologia e criaram do zero o estilo que hoje toca no Spotify de muita gente. O que tinham era discos duplicados, uma mesa de som, um amplificador e um giz.

Essa história ensina a fazer o que se acredita sem ficar deslumbrado olhando pra frente, a não criar tantas expectativas, a não prometer ser revolucionário. Essa história ensina a explorar o que o mundo de oferece, a brincar com as tecnologias que existem hoje, a improvisar buscando soluções simples, a fazer o que queremos. Numa dessas, você acha o seu “Break”. Numa dessas você “risca o disco” e aí nasce o novo hip hop, o novo rock n roll, o novo funk, o novo sertanejo.

Esse texto foi escrito pelo Gab e enviado para quem segue nossa newsletter no dia 24/10/17.

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